Por Mario Mele | Imagens Victor Affaro
SE VOCÊ É pelo menos simpatizante do veganismo, então provavelmente algum vídeo da nutricionista Alessandra Luglio já passou pela sua timeline. Ela discursa pelos direitos dos animais e em favor de uma alimentação à base de vegetais. Em uma dessas postagens, feita há alguns meses, Alessandra foi enfática durante uma entrevista para a gravação de um podcast.
“Não há necessidade de se comer nada de origem animal. Todos os nutrientes de que precisamos para manter o bom funcionamento do nosso organismo e da nossa saúde estão nos vegetais. Comer carne, leite e ovos é uma opção, não uma necessidade. ”
O vídeo viralizou e, obviamente, alguns de seus mais de 180 mil seguidores não engoliram essa ideia. “Discordo, pois a falta de carne vermelha foi a razão da minha anemia”, alegou um. Alessandra rebateu. “Não é questão de concordar ou não, é ciência: não existe maior incidência de anemia em veganos, segundo meta-análises robustas. ” E concluiu: “O ferro também está presente nos vegetais – e em quantidade abundante”.
Alessandra se formou em Nutrição pela USP em 1996, e hoje é uma das maiores especialistas em vegetarianismo e alimentação sustentável do país. Ela jamais colocaria sua carreira e seu trabalho à prova com declarações infundadas. Pelo contrário, quando fala em favor de uma dieta vegetariana para todos, está bem embasada. Tudo por uma razão: para ela, nutrição também é uma forma de se fazer ativismo.
Em uma de suas primeiras lembranças, ela está rodeada de bichos. “Sempre tive muitos animais em casa, desenvolvendo uma relação de muito amor com eles”, conta. Enquanto conversávamos para esta matéria, em seu apartamento localizado na zona sul de São Paulo, de repente me vi cercado por 5 gatos (alguns adotados, outros resgatados) e um cão da raça Pastor de Shetland, que se aproximaram amigavelmente, parecendo querer me dar boas vindas.
“Eu amo os animais, e desde a infância, o meu foco são eles”, diz ela. Na adolescência, quando sua mãe resolveu “cuidar da alimentação da família”, priorizando a dieta macrobiótica (baseada em grãos e cereais integrais), Alessandra decidiu abraçar o vegetarianismo em razão dos animais. Começou tirando a carne vermelha e os peixes do prato.
“Naquela época, você falava que era vegetariano e já te pintavam com o estereótipo do desnutrido”, lembra. Não comer carne, ovos e derivados de animais era coisa de “bicho-grilo”, aquelas pessoas que costumavam andar pelas ruas com roupas largas, calçando sandálias.
Muito mais do que hoje, a carne e os alimentos derivados de ovo e leite dominavam o prato da grande maioria das pessoas, inclusive dos professores e alunos dos cursos de Nutrição. “‘De onde você vai tirar o ferro e o cálcio?’, eles me questionavam na época da faculdade.”
A PRESSÃO ERA tanta que, mesmo depois de formada, Alessandra preferiu manter o silêncio sobre o vegetarianismo. “Vivi os 10 primeiros anos da minha vida clínica sem comer carne, mas não falava sobre isso e nem recomendava aos meus pacientes por uma insegurança minha. ”
Foi só uma etapa: ela começou a ler e pesquisar. Mergulhou na bibliografia do médico nutrólogo Eric Slywitch, que já era uma referência na alimentação vegetariana. Descobriu que a alimentação à base de vegetais só traz benefícios. E há cerca de sete anos, quando estava prestes a completar 40 anos, decidiu dar uma guinada na vida e assumir definitivamente o veganismo.
Alessandra se lembra de que trabalhava em uma empresa multinacional de suplemento alimentar, e foram dois anos de planejamento até essa mudança, de fato, se concretizar. “Eu tive que abrir mão de contratos, rejeitar patrocínios e modificar todo o meu discurso”, explica. “Mas estava determinada, pois não fazia mais sentido eu continuar promovendo alimentos que iam contra os meus princípios e contra a minha própria consciência. ”
Além de cortar os produtos de origem animal da alimentação, ela também eliminou do guarda-roupa as peças que levavam tecidos como couro e lã, substituindo pelas de fibra sintética. Da mesma forma, aconteceu com os cosméticos: shampoos e cremes de marcas que realizam testes em animais passaram a não entrar mais em seu carrinho de compras. Hoje, as evidências de animais em sua casa são sinais de vida, como o latido do cachorro na janela e as travessuras dos gatos, que adoram passear por cima dos móveis e escalar as cortinas.
“O veganismo não apenas me conquistou, como também me abriu portas”, diz Alessandra hoje. “Passei a encarar e a combater as ameaças que vivemos no planeta, como a questão climática, a escassez de peixes nos oceanos, o desmatamento…”, enumera. “Sinto que me tornei um ser humano mais empático.”
DEPOIS DE LARGAR o trabalho na fábrica de suplementos, Alessandra começou a voluntariar na Sociedade Vegetariana Brasileira, ajudando a criar e trabalhando na linha de frente de importantes iniciativas, como a Segunda Sem Carne.
Para esta ação, que desde 2011 é adotada por todas as escolas da rede municipal de São Paulo, ela desenvolveu um curso de treinamento orientado às cozinheiras responsáveis pelas merendas.
“Conseguimos mostrar que é possível preparar uma refeição balanceada, com baixo teor de gordura, alto teor de fibras e, além de tudo, que é mais barata. ” Ela também participa de um projeto na Amazônia, cuja intenção é reintegrar os frutos nativos da região à alimentação dos povos ribeirinhos.
Nas ruas, frequentemente Alessandra está envolvida em ações que alertam para a crueldade contra os animais. Em 2018, por exemplo, participou de um protesto no Porto de Santos (SP) para tentar impedir a exportação de mais de 20 mil bois vivos à Turquia.
Através de fotos e vídeos feitos no interior do navio, os ativistas denunciaram as péssimas condições a que esses animais estavam sendo submetidos para tentar, judicialmente, barrar o transporte pelo mar, que dura em torno de 16 dias. Além disso, por dois anos Alessandra participou de uma ação da organização Animal Equality na Avenida Paulista, em São Paulo, em que ativistas exibiram os corpos de animais mortos em mais um ato impactante contra a exploração de animais.
“Não vejo mais problemas em me reconhecer como ativista”, diz. “Hoje, a gente vê o quanto é bacana as pessoas se posicionarem em relação a tudo, assumindo sua sexualidade, etc.”
Seria a famosa “vitória do amor contra o ódio”. Para Alessandra, suas atitudes só poderiam soar comprometedoras a pessoas de mente fechada ou preconceituosas. Mesmo porque, dentro do consultório, além de suas colocações serem técnicas, elas são ditas sempre de forma serena. É uma postura diferente de quando ela está nas ruas, gritando o mais alto que pode para que a “voz dos animais” seja ouvida.
No papel de nutricionista, ela conta com as mídias sociais para derrubar mitos. Do computador ou do celular, alerta para uma sociedade que é obcecada por proteínas. “O fato é que, quando você tira os animais do prato, realmente o teor proteico é reduzido.
Mas isso não quer dizer que você vai chegar a um nível deficitário. Pelo contrário, a proteína é ajustada a um ponto mais equilibrado. Nesse caso, o aumento do teor de carboidrato, que na verdade nunca deveria ter sido reduzido, é algo saudável. Não podemos distorcer a verdade nutricional e o que diz a ciência: das calorias que consumimos, entre 50% e 60% devem vir dos carboidratos, e apenas 20% das proteínas.
A galera está invertendo isso e, dessa forma, favorecendo processos inflamatórios e doenças cardiovasculares”, explica.
Ela também acha importante advogar pelos produtos que mimetizam a carne, algo que é questionado tanto por vegetarianos quanto por carnívoros: enquanto o primeiro grupo quer apagar o gosto da carne da memória, o segundo vê isso como uma espécie de violação dos “direitos autorais da carne”.
Na verdade, produtos vegetais sabor carne, frango ou peixe, como hambúrgueres e filés empanados, servem para encorajar mais pessoas, principalmente durante a fase de transição onívoro-vegetariano.
É que, mesmo sabendo dos benefícios de uma dieta à base de vegetais, muitas pessoas ainda não estão dispostas a abrir mão do churrasco entre amigos, da pizza do final de semana, do ovo mexido no café da manhã, da bacalhoada da Semana Santa.
Para os veganos, esses são simplesmente prazeres que já deixaram de ser apenas uma escolha pessoal. Documentários como Seaspiracy (que mostra o impacto da pesca sobre o meio ambiente) e Terráqueos (que denuncia o abuso de animais por parte da indústria alimentícia) tentam cercar o assunto tanto pela questão ambiental quanto ética.
“Eu considero positiva qualquer oportunidade para falar sobre o veganismo”, diz Alessandra. “Se o Érick Jacquin for o garoto propaganda do novo hambúrguer vegetal da Seara, por exemplo, para mim, ótimo! Quanto mais os players da carne descobrirem que também podem ganhar dinheiro dessa forma, o veganismo tende a ganhar forças, o que é bom para os animais e o planeta. ”
COMO ACONTECE COM tudo o que vira tendência, o veganismo também passou a ser visto com certo glamour. Restaurantes como o Teva , que tem no cardápio um delicioso escalope de tempeh, ou o Green Kitchen , que serve um autêntico choripán de linguiça vegetal, costumam ser os estabelecimentos veganos que aparecem nos guias gastronômicos.
Só que não é qualquer pessoa que está disposta a pagar mais de R$ 50 reais por um prato que, além de tudo, não vai carne. O veganismo, então, passa a ser visto como “coisa de rico”. “Só que, quantos restaurantes por quilo existem em São Paulo, onde você pode simplesmente se servir de arroz, feijão, legumes e verduras? ”, questiona Alessandra. “Inúmeros, mas infelizmente a mídia ainda não parece estar preparada para falar de PF sem carne. ”
O programa Segunda Sem Carne, aquele mesmo que introduziu a dieta vegetariana nas escolas paulistanas, também está presente em companhias privadas, como a Natura e a IBM. E foi através dele que Alessandra percebeu que o ponto de convencimento no setor empresarial é o custo mais baixo, e não a compaixão pelos animais.
“Aí me perguntam, ‘E o que adianta?’.” Ela mesma responde. “Adianta tudo, porque, nessas horas, temos que ser pragmáticos: aquelas pessoas estão deixando de comer carne, e isso é o principal.
No fim das contas, todo esse trabalho voluntário acaba se voltando favoravelmente, tanto à causa vegana quanto a ela. Segundo a última pesquisa do IBOPE sobre o tema, o Brasil tem hoje 30 milhões de vegetarianos (14% da população total do país), o que representa um crescimento de 75% em apenas 6 anos.
Não é difícil imaginar, portanto, que para auxiliar na transição alimentar, a procura por profissionais da saúde, principalmente nutricionistas, tenha aumentado. Por menor que seja – comparada à “utopia vegana” de um mundo onde o ser humano e os animais convivam em pé de igualdade – já é alguma recompensa a alguém que escolheu viver de acordo com os próprios ideais.
Alessandra não para: ultimamente, ela tem praticado ioga vestindo as peças da Legging Solo Active e Regata Ion UV (“Elas não limitam meus movimentos”, diz) e corrida na montanha com seus tênis On Cloudventure feminino, que, segundo ela, tem formato anatômico e ótima propulsão.
Nota: Este texto faz parte da série “Pessoas que Usam”, uma parceria entre as marcas Solo e On para apresentar pessoas ligadas ao universo outdoor que se destacam através de ideias e iniciativas de efeito relevante. As opiniões expressas aqui não refletem, necessariamente, o ponto de vista ou o posicionamento dessas marcas.