Por Mario Mele
Se tem um cara que dá visibilidade à escalada em rocha no Brasil, ele se chama Eliseu Frechou. Aos 52 anos, Eliseu já se embrenhou nos projetos mais complicados e desafiadores possíveis, abrindo vias no Monte Roraima (Guiana), Valle de Los Cóndores (Chile), Kaga Tondo (Mali) e Parque Nacional de Yosemite (EUA) — este último, considerado a meca da escalada big wall. Em 37 anos dedicados ao esporte, Eliseu também já explorou rochas pelo Brasil inteiro, principalmente em São Bento do Sapucaí (SP), cidade conhecida pelos diversos setores de escalada (esportiva e big wall), onde ele mora há 31 anos.
Só em São Bento, Eliseu já abriu cerca de 270 vias. E foi justamente no “quintal de casa” onde ele deu início ao seu mais novo desafio, ainda em curso: a Tríplice Coroa da escalada brasileira (uma referência ao Triple Crown do Yosemite, que compreende escaladas nos famosos monólitos Half Dome, El Capitan e Watkins).
Em março de 2019, escalando em solitário (sozinho, mas utilizando corda e outros equipamentos de segurança), Eliseu abriu a via Skywalker, uma linha de 330 metros na face norte da icônica Pedra do Baú, o cartão postal de São Bento.
E, no mesmo estilo solitário, já começou os trabalhos de abertura de uma nova via na Cachoeira do Tabuleiro, na serra do Espinhaço (MG).
No filme #JourneyLife, lançado recentemente pela Solo, há imagens inéditas dessas duas escaladas, a do Baú e a do Tabuleiro.
“Além disso, no filme pude falar um pouco do que eu sinto em relação à escalada, de como é o meu dia a dia, quais as minhas expectativas em relação à montanha e de como eu vivo esse sonho há tanto tempo”, diz Eliseu. “A Solo faz parte disso”, completa.
Eliseu está determinado. Depois de concluir a escalada no Baú, ele já abriu cerca de ¾ da via no Tabuleiro. Em seguida, pretende ir ao Dedo de Deus, na Serra dos Órgãos (RJ), para a última etapa de sua trilogia solitária, ainda sem data marcada.
Tem sido tudo do seu jeito. “É um projeto pessoal. Hoje não escalo mais para chamar a atenção da mídia, só faço o que eu quero”, garante.
A seguir, ele dá detalhes:
A trilogia
São três escaladas bem distintas, seja em relação à rocha ou à logística empregada. Apesar de as montanhas serem todas localizadas na região sudeste, cada lugar tem o seu próprio visual, todos muito bonitos, por sinal. O “Baú” está nos campos de altitude da Serra da Mantiqueira, num clima de montanha quase único no Brasil; o Tabuleiro já é um paredão de quartzito ao lado de uma das maiores cachoeiras do país; o Dedo de Deus, montanha símbolo do montanhismo brasileiro, está no meio da floresta da Serra dos Órgãos.
Escalar em solitário
Eu gosto de escalar em solitário, é muito bacana, mas também é um pouco egoísta. Nas primeiras escaladas em solitário que fiz, fiquei bem preocupado, pensando que me sentiria sozinho, que seria entediante não ter com quem conversar. Mas sempre fui tão focado na escalada, que é zero solidão. Às vezes, até penso nos amigos com quem eu curto escalar. Mas desde que escalei a Yosemite Falls, nos EUA (a quinta maior cachoeira do mundo), em 2003, não tinha feito ainda nenhum outro grande projeto de conquista em solitário. É um jogo diferente, você tem que tomar todas as decisões, e nem sempre acerta. Mas eu sempre fui um pouco xerife nas minhas expedições. Vivo muito isso no dia a dia como guia de montanha, então as pessoas já esperam de mim as tomadas de decisão. O problema é que, em solitário, você tem que escalar por duas pessoas.
Os desafios físicos e mentais
Escalar em solitário é um exercício de superação. Porque uma coisa é você guiar uma enfiada (distância entre uma base e outra) que, por mais difícil que seja, sabe que no final vai poder respirar e descansar porque o seu amigo vai “limpar a via”, recolhendo os equipamentos. Já em solitário, na hora em que você chega lá em cima, tem que descer para fazer todo o serviço que outra pessoa faria. Fora isso, você tem que puxar toda a sua bagagem sozinho, sem ninguém para te passar uma água ou um agasalho, caso precise. Portanto, essa logística tem que ser muito mais apurada do que em uma escalada a dois.
Preparação
Para a conquista na Pedra do Baú, reajustei meu treino uns três meses antes. Fiz exercícios específicos de resistência. Quanto aos equipamentos, comecei a separá-los faltando uns 10 dias para a escalada. Já fazia bastante tempo que eu não escalava em solitário, e não poderia esquecer de nada. Fiz um check-list baseado na relação custo-benefício de cada equipamento, peso, utilidade… Em uma escalada como a do Baú, você tem que levar, facilmente, mais de 600 itens, entre equipamento, comida, etc. Isso por que é no meu “quintal de casa”. Ainda tive que abrir a trilha, carregar todo o equipamento até a base… É uma trabalheira.
Escaladas e imprevistos
No Baú, correu tudo bem. Linkei algumas vias que haviam sido abandonadas há muito tempo e que precisavam de reforma, e consegui concluir em um dia a menos do que o previsto. Agora, no Tabuleiro tem sido uma escalada mais adrenalizante, as rochas são bem fraturadas. A primeira tentativa foi uma escalada mais lenta. E ainda teve um problema: exatamente nos dias em que eu estava lá, tinha uma galera colocando uma placa em homenagem ao Leandro Iannotta, o Mr. Bean (escalador mineiro que morreu em 2019, no Fitz Roy). Tinha muita gente nesta homenagem, e os caras estavam passando bem embaixo de onde eu estava conquistando a via. Havia muitas pedras soltas e eu tinha que jogá-las para baixo para continuar abrindo a via. E não adiantou avisar aquelas pessoas sobre isso, porque sempre sobrava alguém bem embaixo. Fiquei com medo de causar um acidente e então resolvi largar mão daquela tentativa. É difícil, porque você tem que lidar com o fator psicológico de ter que abandonar um objetivo, mesmo que temporariamente. Mas também não quero ter nenhum tipo de cobrança. Este é um projeto pessoal que tem me acrescentado profissionalmente, como escalador e como instrutor de escalada. Antes de mais nada, quero viver intensamente a história que eu estou escrevendo na montanha.