Por Mario Mele | Imagens Victor Affaro
DEPOIS DE UMA HORA de conversa com Ruy Tone, ele reforçava sua visão sobre “sustentabilidade”, tema que é muito presente em sua vida. “Virou uma expressão ‘bonitinha’, concorda?”, perguntou ironicamente. Não que Ruy estivesse fazendo pouco caso sobre a necessidade de preservação ambiental. Pelo contrário, ele estava querendo dizer que o termo “sustentabilidade” está desgastado, é algo que já foi tão falado e pregado nos últimos tempos que perdeu o seu real propósito. Para ele, sustentabilidade deve ir além da preocupação com a origem da matéria-prima ou da água, assim como não deve estar relacionado somente à adesão de painéis solares para a produção de, pelo menos, parte da energia elétrica utilizada por uma empresa.
“Isso é óbvio, é o básico, é como não fazer xixi fora da privada”, justifica. Para Ruy, ser sustentável hoje tem a ver, principalmente, com estar integrado à sociedade local. Saber respeitá-la, entender como ela funciona e como o turismo pode colaborar com o seu contínuo desenvolvimento. É exatamente dessa forma que ele vem apresentando soluções e resultados positivos, tanto à natureza quanto às pessoas, na região de Novo Airão, no Amazonas.
Neste município de cerca de 20 mil habitantes, Ruy inaugurou, em 2014, o Mirante do Gavião, um belíssimo hotel de selva cinco estrelas de arquitetura impactante não apenas visualmente. Seu empreendimento também põe em prática conceitos ampliados de sustentabilidade.
RUY TEVE SEU primeiro contato com a Amazônia aos 18 anos, logo depois de ingressar na faculdade de Engenharia Civil. Nas férias, contra a vontade do pai, ele pegava o dinheiro que juntava durante o semestre letivo, dando aulas particulares de matemática, e caía na estrada. Ele até tinha um destino em mente, mas não era garantido se chegaria, já que o meio de transporte era a carona.
Tendo os quatro avós japoneses, a obstinação é uma de suas maiores qualidades. E, em uma época em que viajar dessa maneira era ainda mais incomum no Brasil, Ruy foi longe: fez São Paulo-Belém (2,9 mil km) e São Paulo-Porto Velho (3 mil km), só para citar duas de suas aventuras. Na maioria das vezes, ia (e voltava) sozinho; às vezes, com um ou dois amigos da faculdade, que também curtiam a ideia de deixar o destino ao acaso.
“Vi a beleza do que é ‘mochilar’”, conta Ruy. “Como é ficar na estrada o dia inteiro, durante dias, sem saber direito para onde você está indo. É tão lindo ver as pessoas te ajudando, te dando comida, abrigo e, às vezes, até pagando um hotel para você ficar, se sensibilizando com suas péssimas condições.”
A generosidade que Ruy passa adiante hoje, possivelmente foi potencializada naquela época.
Em seu primeiro mochilão, ele foi com amigos ao Ushuaia, no extremo sul do continente americano. Primeiro, pararam em Buenos Aires, onde se hospedaram na casa de um conhecido por uns dias. Depois, seguiram em direção à Patagônia, rumo à Baía de Lapataia, já no Ushuaia. “Acampamos por uma semana em barracas precárias, passando frio, mas curtindo muito”, lembra. Voltaram também pegando carona. No Brasil, caiu a ficha de que ele mal conhecia o seu próprio país, além do estado de São Paulo, onde nasceu e mora até hoje, na capital. Então, nos anos seguintes, encontrando motoristas voluntários na beira da estrada, visitou o Pantanal, as Serras Gaúchas e, claro, a Amazônia.
EM 2004, EM CONDIÇÕES totalmente diferentes às da época de universitário, Ruy retornava àquela região com um novo objetivo: fundar um projeto que promovesse, simultaneamente, o turismo de imersão, a preservação da fauna e da flora e a participação da comunidade. Apesar de não ser uma ideia 100% original, tinha o nobre propósito de fazer com que turistas e moradores locais interagissem de maneira positiva — uma das bandeiras levantadas hoje pelo Geoturismo.
A inspiração vinha de uma experiência que ele tinha tido anos antes. Como empresário do ramo de turismo, Ruy tornou-se sócio de uma agência que opera roteiros em lugares pouco convencionais, principalmente na África e na Ásia. Em uma dessas viagens, ele se hospedou em um hotel em Moçambique, que era responsável por criar e bancar um projeto de reassentamento de refugiados. “Eram moçambicanos que, fugindo da guerra civil de 1974, cruzaram a fronteira para o Malawi”, explica. Mais de 20 anos depois, eles podiam finalmente regressar ao seu país de origem graças ao tal hotel, que criara uma enorme reserva com capacidade para abrigar dez comunidades.
“Fiquei encantado como aquele pequeno empreendimento de cinco quartos era capaz de sustentar uma extensa cadeia de funcionários, gerando mais de 100 empregos, desde o produtor local de verduras, até o professor da escolinha, ou a costureira das cortinas das habitações. Na hora, pensei, ‘Como ainda não temos um negócio desses no Brasil?’.”
Oferecer serviço premium seria prioridade, como acontecia no hotel moçambicano. Imediatamente, Ruy se lembrou da Amazônia. Apesar de já ter visitado a região nos anos de universidade, ele só pisou pela primeira vez em Manaus naquela viagem, em 2004.
Não perdeu tempo: alugou um barco, contratou um barqueiro e um guia, e, juntos, subiram navegando pelo Rio Negro.
Há dezessete anos, Novo Airão era um lugar ainda mais isolado. “Nem telefone tinha”, lembra Ruy. Expedições fluviais seriam o atrativo turístico sustentável perfeito para estabelecer boas relações com a natureza e as comunidades locais. Além do serviço de bordo de primeira classe, elas contariam com a participação efetiva do povo nativo. Em sociedade com o barqueiro e o guia que o levaram àquela primeira expedição, Ruy então criou a Katerre, empresa que até hoje segue atuante com os mesmos três sócios.
“Decidimos que nos tornaríamos especialistas na bacia do Rio Negro”, conta Ruy. “E, durante os seis primeiros anos, fomos conhecer a fundo a calha de mais de 1.000 km desse rio — até a cidade de São Gabriel — e seus afluentes, principalmente os rios Jaú e Jauaperi.” De fato, a Katerre ainda é a operadora que mais mapeou em detalhes a malha hidrográfica que se estende pelo oeste do Amazonas, onde está localizado o importante Parque Nacional do Jaú.
Mas os roteiros não deslancharam do jeito que eles imaginavam. “A gente só conseguia fechar uma expedição a cada seis meses, mais ou menos, e com meia dúzia de pessoas”, diz Ruy.
Se, por um lado, o turismo em Novo Airão não amadureceu, por outro, a Katerre foi uma das únicas empresas que continuaram apostando naquela região. Para melhorar a receptividade de seus clientes, a empresa criou uma base de apoio no município, com um bar e uma piscina. A ideia, que no início era ser algo bem simples, evoluiu para um luxuoso hotel de selva: o Mirante do Gavião, fundado por Ruy em parceria com os seus mesmos dois sócios na Katerre.
“No começo, imaginávamos que o Mirante funcionaria junto com as nossas expedições, mas rapidamente ele ganhou vida própria”, explica Ruy.
Talvez as pessoas ainda se sintam intimidadas em subir em um barco e sair navegando no meio da floresta, sem internet e outros recursos que o Mirante do Gavião oferece com louvor.
Apesar do requinte, o Mirante é uma real imersão Amazônica. Desde a construção, esta era uma preocupação de Ruy, que a princípio levou a arquiteta Patricia O’Reilly (Atelier O´Reilly) para conhecer o terreno onde seria erguido o hotel.
“Fizemos diversos estudos sobre clima, ventilação e incidência solar, até chegarmos ao melhor design bioclimático”, explica Patricia, que é Mestre em Arquitetura e Urbanismo Sustentáveis. A decisão de incluir “brises” (estruturas ripadas colocadas do lado de fora das fachadas), por exemplo, foi pensando em reduzir a temperatura interna do ambiente, diminuindo, assim, a necessidade de deixar o ar condicionado ligado.
Antes de pôr as ideias no papel, a arquiteta fez três imersões fluviais com a Katerre pelo Rio Negro e seus afluentes. A mão de obra teria que ser local, e ela só conseguiu convencer um construtor nativo de barcos de madeira, ao explicar que o Mirante seria “um barco de ponta cabeça”, já que ele insistia que, um hotel, jamais saberia construir.
Ao trazer uma tecnologia local ao projeto, Patricia colaborou com a integração social e a preservação da cultura local: além dos materiais utilizados, a própria comunidade participou do processo de construção, e agora ela também é responsável pela manutenção.
O paisagismo e a decoração interna também são elementos definidores da personalidade do Mirante. São projetos assinados pelo Studio Clariça Lima , da esposa de Ruy.
Recentemente, o Mirante do Gavião foi um dos projetos selecionados para debutar na Bienal AMA + ZÔNIA 2022, um evento internacional que será palco de encontros e discussões sobre o meio ambiente.
Para Ruy, o êxito do Mirante está em cada detalhe, inclusive na relação da construção com o terreno e o seu entorno. “Você só entende isso, realmente, estando lá; é algo que as fotos e os vídeos não conseguem traduzir com fidelidade”, garante.
HOJE DIVIDIDO entre São Paulo e Novo Airão, Ruy está cada vez mais imerso na realidade amazônica, não só descobrindo suas belezas, mas também entendendo os problemas. Mais do que isso, ele tem feito a diferença na vida das pessoas. “Hoje, nosso principal guia é um ex-caçador e ex-traficante de quelônios”, exemplifica.
Ruy não é de ficar propagandeando o que faz, nem romantizando a realidade dos povos ribeirinhos. Ele acha um erro acreditar que preservar a Amazônia é apenas deixar de cortar árvores. Com 25 milhões de pessoas morando naquela região (Fonte: Um outro olhar para a Amazônia, de Moema Veloso), é claro que, em algum momento, elas vão encontrar um meio de sobrevivência que dependa da exploração contínua de recursos naturais.
“Provavelmente, a Amazônia é o único lugar do mundo onde você pode navegar por 24 horas sem ver nenhum outro ser humano, mas ela, de fato, está sendo destruída, e isso é praticamente irreversível”, diz Ruy, com franqueza. “Somente entre 70% e 80% da floresta nativa ainda está de pé, uma marca limite para não ocorrer o efeito de não-auto suficiência da floresta, ou seja, para a água continuar sendo retida e, dessa forma, a floresta não se transformar em uma savana”, alerta Ruy, que percebe que há cada vez mais gente e menos bichos na Amazônia.
Isso não significa, porém, que ele não possa ajudar a dar um novo sentido à vida daqueles moradores. Como Presidente do Conselho da Fundação Almerinda Malaquias, uma ONG que há mais de duas décadas atua junto à comunidade de Novo Airão, Ruy está à frente de interessantes projetos em curso – e com boas perspectivas a longo prazo.
No Rio Jauaperi, por exemplo, onde a Katerre faz algumas de suas expedições, há um trabalho de preservação em todas as sete praias, estabelecendo um relacionamento direto com seis comunidades dali, no mais puro exercício de conscientização. Só neste ano, eles vão soltar 6 mil filhotes de tartarugas nas águas do Jauaperi.
Como diz Ruy, “É um trabalho de empoderamento da comunidade”, ou, para ser mais direto, é uma alternativa de renda àquelas pessoas. O cara que antes capturava tartarugas para vendê-las no mercado ilegal, passa a ser o seu guardião nas praias onde são enterrados os ovos desses animais. Ele passa a ter uma nova função, legal e remunerada. “Você geralmente lida com centenas de pessoas e, portanto, não dá para impor nada, mas sim sugerir um trabalho educacional, mostrando que é possível preservar a floresta e, ao mesmo tempo, gerar renda a partir dela”, explica Ruy.
A conta só fecha graças ao ecoturismo, através de agentes como o Mirante do Gavião e as Expedições Katerre, que destinam parte de seus lucros para custear essas ações. E, para quem viaja a esses lugares, nada mais gratificante do que ver bons resultados acontecendo. Da mesma forma que Ruy, como turista, presenciou em Moçambique.
Sua experiência em querer mudar a realidade de um lugar o fez entender também o quanto é difícil gerar a consciência coletiva. Mesmo assim, ele ainda é otimista quanto às novas gerações, e acredita na eficácia dos trabalhos que a Fundação Almerinda Malaquias desenvolve, principalmente, junto aos jovens.
É que, além de existir o “Ruy, empresário e preocupado com o meio ambiente”, está o ser humano “autossustentável” em sua própria fé, o mesmo que pegava carona e acreditava que era possível ir cada vez mais longe.
Ruy tem aproveitado a jornada com seu On Cloudventure, a camiseta Merino, calça Authentic e jaqueta Rain Storm da Solo.
Nota: Este texto faz parte da série “Pessoas que Usam”, uma parceria entre as marcas Solo e On para apresentar pessoas ligadas ao universo outdoor que se destacam através de ideias e iniciativas de efeito relevante. As opiniões expressas aqui não refletem, necessariamente, o ponto de vista ou o posicionamento dessas marcas.